A CULPABILIDADE DE ATO E A ACTIO LIBERA IN CAUSA


O estudo dos limites da responsabilidade penal é de vital importância, uma vez que o "jus puniendi" do Estado afeta um dos direitos individuais fundamentais de qualquer pessoa, o direito à liberdade.

Por isso, o caráter subsidiário do Direito Penal impõe a utilização, apenas em último caso, deste mecanismo de controle social.

A responsabilidade penal é subjetiva e pautada na culpabilidade, que pode ser definida como o juízo de reprovação da conduta típica e antijurídica, ou seja, é a reprovabilidade pessoal pela realização de uma ação ou omissão típica e ilícita.

Este juízo de reprovação recai sobre o ato do agente, sobre o fato típico e antijurídico por ele praticado, constituindo, assim o que se chama de culpabilidade de ato e que se contrapõe à culpabilidade de autor que, por sua vez, refere que o que se reprova ao homem é a sua personalidade, o seu caráter, seus maus hábitos de vida.

imputável é o sujeito que apresenta desenvolvimento mental completo que, em decorrência de sua sanidade, apresenta a capacidade de saber que sua conduta contraria os mandamentos da ordem jurídica e também a capacidade de determinar o seu comportamento no sentido de se abster da infração à norma.

O reconhecimento da imputabilidade depende, então, dessa aptidão individual para conhecer a ilicitude do fato e determinar o comportamento de acordo com esse entendimento, no momento da conduta típica.

O referido conceito de imputabilidade se desenvolveu a partir do critério biopsicológico, adotado pela lei brasileira, que consiste, primeiramente, em verificar se o agente apresenta desenvolvimento mental incompleto, retardado ou ainda alguma doença mental. Em caso negativo, não será considerado inimputável, mas, em caso positivo, dever-se-á, então, analisar se, ainda assim, o indivíduo era, ao tempo do fato, capaz de entender o caráter ilícito daquela conduta; somente será considerado inimputável se não tiver essa capacidade.

O Código Penal Brasileiro prevê quatro causas de exclusão de imputabilidade e, por consequência, da culpabilidade, nos artigos 26, caput e 28, §1º: doença mental; desenvolvimento mental incompleto; desenvolvimento mental retardado; embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou forca maior.

No que se refere à embriaguez, tema desta breve análise, o Código Penal Brasileiro apresenta a embriaguez completa advinda de caso fortuito ou força que isenta de pena (artigo 28 §1º), a embriaguez incompleta advinda de caso fortuito ou força maior que reduz a pena (artigo 28 §2º), a embriaguez voluntária ou culposa que não exclui a imputabilidade nem reduz a pena (artigo 28 inciso II) e a embriaguez preordenada (artigo 61, inciso II, alínea l).

Na Exposição de Motivos do Código Penal Brasileiro vê-se a adoção pela lei brasileira da teoria da actio libera in causa ou da ação livre na causa.

O exemplo clássico de aplicação da teoria da actio libera in causa é o da embriaguez preordenada, que segundo o Código Penal Brasileiro agrava a pena, em que o agente, sóbrio e mentalmente são, com a consciência e vontade dirigidas à finalidade de cometer o crime, embriaga-se para, privado dos freios morais, conseguir executar o ato, ou, ainda, para eximir-se da pena, colocando-se em estado de inimputabilidade.

No caso específico da embriaguez preordenada, o dolo do agente em relação ao ato criminoso é expresso e a embriaguez evidencia-se no primeiro elo na cadeia de eventos que conduz ao resultado antijurídico, ainda que meramente preparatório, surgindo ela como conditio sine qua non.

A teoria da actio libera in causa é geralmente utilizada pela doutrina penal para justificar a responsabilidade penal por fatos típicos cometidos por autores que se põem em estado de inimputabilidade previamente à comissão de tais fatos.

O problema da teoria da actio libera in causa decorre que o dolo e a culpa são deslocados para a vontade anterior ao estado ao etílico completo. São elementos da actio libera in causa: a conduta livre do agente que determina sua própria incapacidade de culpabilidade e o nexo  causal, a ligação entre esta conduta livre, cometida pelo sujeito enquanto  imputável,  e o evento delituoso praticado sua consciência já havia decaído.

Ressalte-se que, para um fato ser considerado como de actio libera in causa, é necessário que o resultado criminoso tenha sido querido ou previsto pelo sujeito na fase de imputabilidade, ou ao menos que esse resultado fosse previsível para o agente.

O principal elemento na classificação da embriaguez quanto à intenção do agente é, obviamente, o fim por ele perseguido quando da ingestão do álcool.

 

Há de se salientar que, na legislação brasileira ao transcorrer de sua evolução histórica, a embriaguez que não fosse proveniente de caso fortuito ou força maior jamais excluiu a imputabilidade, porque o indivíduo, no momento em que ingeria a substância, era livre para decidir se devia ou não fazer; assim, a conduta típica e ilícita, mesmo que praticada em estado de embriaguez completa, originou-se de um ato de livre arbítrio do sujeito, que optou por ingerir a substância, quando possuía a possibilidade de não o fazer.

O que se combate é o resquício de responsabilidade penal objetiva que permanece no ordenamento jurídico pátrio com esse deslocamento do dolo para o momento da ingestão da substância em casos estranhos à embriaguez preordenada, contrariando a Reforma Penal de 1984 que reformulou toda a teoria do delito colocando a culpabilidade como base para a dosimetria da pena e que buscou coibir a culpabilidade de autor, calcando o sistema de responsabilidade penal sob a ótica da culpabilidade de ato.

Mais do que contrariedade à novel teoria da ação, a adoção da actio libera in causa afronta a Constituição Federal de 1988, pois nesta consta de forma expressa no artigo 5º inciso LVII o princípio do estado de inocência ou princípio da presunção de inocência ou ainda chamado de princípio da não culpabilidade. Por este princípio não mais se permite a interpretação da legislação penal substantiva com a presença da responsabilidade penal objetiva.

Nestas breves considerações vislumbrou-se que a teoria da actio libera in causa promove uma distensão indevida da imputação penal, o que configura um dos (infelizmente não é o único) exemplos de que ainda existe responsabilidade objetiva na legislação penal brasileira, apesar disto não ser mais admitido após a Reforma Penal de 1984 e a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988.